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segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Tragédias provocadas pelas chuvas refletem desamparo social




Por Gabriela Moncau, Revista Caros Amigos

Em Minas Gerais, 2,1 milhões de pessoas foram afetadas; quase cem cidades sob estado de emergência

Em Minas Gerais, 87 cidades estão em estado de emergência. No total, 2,1 milhões de pessoas foram afetadas pelas tempestades do início do ano, em 142 municípios só do estado mineiro. Centenas de casas e pontes foram destruídas. No Rio de Janeiro, as enchentes e os deslizamentos de terra mataram oficialmente 905 pessoas. Já são mais de 34 mil pessoas desabrigadas, de acordo com o último boletim do governo do RJ. No Espírito Santo 139.453 pessoas foram afetadas pelas chuvas, segundo a Defesa Civil estadual, ao menos 5.074 edifícios foram depredados e 56 pessoas se feriram.

Já virou tradição. Todo início de ano, os brasileiros assistem, com sensação de impotência, a repetição das tragédias de deslizamentos de terra e inundações no período de chuvas do verão. Por que a situação não é revertida? Cinismo? Despreparo? Ignorância? Falta de recursos? Desleixo? Opção política? A Caros Amigos conversou com Kazuo Nakano, arquiteto urbanista que atualmente desenvolve pesquisas urbanas e coordena assessorias técnicas em diversas cidades brasileiras na elaboração de planos diretores participativos, a respeito do processo de desenvolvimento urbano das cidades brasileiras e os motivos por trás das repetidas e trágicas enchentes.

Todos os anos, no período das chuvas, as enchentes e os desmoronamentos se repetem, atingindo milhares de pessoas em todo o Brasil. Por que, diante de tragédias tão anunciadas que têm praticamente até data marcada, essa situação não é evitada?

Tem uma dimensão, no cerne desse problema, que é de fato muito difícil conduzir. Não é um problema recente, algo que apareceu há pouco tempo. É consequência de uma construção histórica que foi se materializando nas cidades do país ao longo da segunda metade do século XX, período em que o Brasil viveu a transição rural para urbana. Entramos em um ritmo acelerado de urbanização, com milhares de pessoas se dirigindo para as grandes cidades e nesse processo o padrão de urbanização que foi se consolidando, o padrão de uso e ocupação de solo, o padrão de produção de bairros – principalmente os bairros que servem de alternativa para a população de baixa renda – foi um padrão de risco, em que essas famílias tiveram como única alternativa de moradia urbana o mercado informal. Um mercado cujos preços da terra e da moradia cabiam no pequeno bolso dessas famílias trabalhadoras e migrantes, por ser uma terra sem infra-estrutura, precária, em áreas periféricas, muitas vezes em áreas de risco como na margem de rios e córregos ou encostas de morros onde é possível que haja deslizamento. Podemos dizer que são áreas que constituem territórios excluídos. São áreas interditadas do direito à cidade. Isso foi sendo constituído ao longo de décadas.

Temos que tomar cuidado nessa análise para não responsabilizar essas famílias de baixa renda por estar morando nessas situações. Elas não são agentes causadores desses problemas, elas acabam sendo sujeitadas a essas condições. Essas lacunas tanto do mercado urbano (viário, fundiário e habitacional) quanto das políticas urbanas no Brasil, fizeram com que a única alternativa de territorialização dessas famílias na cidade fosse por meio do mercado informal gerador dessa situação de vulnerabilidade e de violação do direito à cidade. Aí está a raiz do problema e nós fomos reproduzindo isso em todas as regiões do país.

Existe outro componente importante que é o sistema viário. A organização do território das cidades se dá a partir de um sistema de transportes dedicado predominantemente para o automóvel individual. Nesse aspecto, o sistema viário tem construído nas cidades, principalmente nas áreas mais planas, áreas próximas aos rios e córregos. Vemos na maior parte das cidades essas regiões ocupadas por grandes avenidas. Isso propicia possibilidades de negócio para o setor imobiliário. Essas avenidas drenam, impermeabilizam, canalizam as águas e com isso criam acesso a uma grande quantidade de terra ao lado e que passam a ter valor no mercado imobiliário.

A ampliação da marginal Tietê em São Paulo é um bom exemplo desse tipo de medida?

Sim, e principalmente a marginal Pinheiros. A história da canalização do rio Pinheiros reflete bem essa conjugação entre modelo viário, disciplinamento do curso de água e abertura de espaços para o capital imobiliário. Esse tipo de padrão vem se consolidando nas nossas cidades e obviamente geram consequências. A água nas cidades não deixa de existir, em período de chuvas vemos esses impactos: a água escorre para solos mais frágeis com perigo de deslizamento, se acumula nessas áreas de baixada do sistema viário, etc. Então não podemos considerar esse problema como sendo um problema da natureza, mas sim consequência de um processo de urbanização que segue um modelo de deixar parte da população excluída do direito a moradia digna e acesso à cidade.

Diante desse panorama, quais os maiores entraves para o controle da ocupação da terra no atual contexto político?

A estrutura fundiária e de propriedade privada imobiliária é um dos grandes entraves para promover uma transformação mais profunda nas condições das nossas cidades. O processo todo produziu uma estrutura que reitera as desigualdades sócio-econômicas porque segue a lógica do mercado e obviamente mercado só atende as necessidades das pessoas que podem pagar. Imóveis em lugares com acessibilidade ao transporte público, com boa infra-estrutura, em regiões onde há mais emprego, são ocupados pelos mais endinheirados ou grupos empresariais que tem capital para investir nessas áreas. Essa estrutura é reflexo do sistema de valor da terra, e esse valor está altamente concentrado. Alterar essa estrutura com política pública, regulação pública, planejamento público, é muito difícil. Praticamente todas as políticas públicas nos territórios urbanos estão capituladas por esses grupos que detêm a concentração de renda e se apropria desse valor imobiliário. Desmontar isso para melhorar as condições dos rios, córregos, as condições de moradia e o acesso das pessoas a todos os seus direitos é muito difícil. Ninguém aqui ousa desconstruir a desigual estrutura de valor fundiária, viária e imobiliária que vivemos.

Qual a sua avaliação a respeito das atuais políticas públicas voltadas para a questão da urbanização? Qual sua opinião, por exemplo, sobre o programa do governo federal “Minha casa, minha vida”?

As políticas públicas aqui no Brasil hoje não estão priorizando produzir moradia para população de baixa renda e em larga escala para essas famílias que estão em área de risco, em situação de alta vulnerabilidade. A gente não vê, por exemplo, nessa produção que está acontecendo com o “Minha casa, minha vida” uma sinergia entre a construção e o atendimento dessas famílias. Tem uma ação ou outra em um município ou outro, uma equipe da prefeitura tentando fazer essa articulação. Mas isso é super pontual e não é um elemento estruturante do programa, pois ele tem outros objetivos, muito mais economicistas do que relacionados ao desenvolvimento urbano social efetivamente. O programa foi criado para enfrentar a crise global originária da bolha financeira e imobiliária norte-americana. Desde 2009 esse foi o DNA do programa “Minha casa, minha vida” e esse DNA continua ativo: é um programa de financiamento da produção de conjuntos habitacionais pelo mercado, por empresas do setor imobiliário. Atender necessidades sociais, efetivar direito à cidade, à moradia por meio do mercado já vimos que não dá certo. A política neoliberal já foi largamente questionada principalmente nessa área do desenvolvimento urbano: o mercado não tem esse propósito nem a efetividade de resolver questões sociais de populações vulneráveis de baixa renda. O mercado visa o lucro. A lei do mercado é como a lei da gravidade, é infalível. O “Minha casa, minha vida”, portanto, tem esse DNA pró mercado. Diante disso, a política pública que tem como sentido principal corrigir distorções do mercado, acaba ficando absolutamente presa, limitada, e pautada pelo próprio mercado. Por isso que hoje no Brasil não temos uma política nacional de desenvolvimento urbano voltada para efetivação da função social da propriedade, para a efetivação do direito à moradia digna. Tivemos uma tentativa no primeiro mandato do governo Lula com a criação do Ministério das Cidades, mas isso está diante de vários impasses. Tem um livro da Ermínia Maricato que chama “Os impasses da política urbana no Brasil”, lançado no ano passado, em que ela relata em um capítulo as bases para esses impasses.

Ela chegou a dizer em um artigo que paradoxalmente a proposta de reforma urbana desapareceu da cena política depois da criação do Ministério das Cidades.

É, a partir do redirecionamento e da captura do Ministério para outra agenda, outra cultura política de desenvolvimento urbano que é muito mais a cultura do balcão, um modo de repasse de recursos do orçamento geral da União para agentes do mercado de um lado e para governos estaduais e municipais de outro segundo uma lógica clientelista, a lógica do balcão, “toma lá, dá cá”. O Ministério das Cidades foi criado com um sentido e esse sentido se desvirtuou.

Como você acha que a Copa do Mundo e as Olimpíadas vão pautar as políticas de gestão urbana daqui para frente?

As ações relacionadas com esses megaeventos e que têm impactos nos espaços urbanos das cidades do Brasil já mostraram a que vieram, já colocaram as garras de fora e demonstraram seus efeitos. Esses megaeventos esportivos e toda a engenharia institucional, financeira e empresarial que está em volta dela e que não é uma coisa local ou nacional, é global, seguem basicamente a lógica do negócio. Lógica que tem como objetivo principal abrir oportunidades de investimentos para o mercado. O objetivo é abrir frentes de atuação de agentes do mercado, que atuam transnacionalmente.

Pensando de maneira mais específica da relação disso com o espaço urbano, a gente vê que por conta dessa característica empresarial desses megaeventos, a política pública fica completamente em estado de exceção, como diz o Carlos Wainer. A política pública vira um elemento a mais a serviço dessa lógica mercadológica associada a esses megaeventos. As legislações urbanas, as leis municipais, a Lei Geral da Copa, as alterações na lei de licitação, as mudanças nos procedimentos de fiscalização e acompanhamento dos gastos públicos por conta do Tribunal de Contas e da Controladoria e tudo mais. Tudo isso é operado na lógica da exceção, para favorecer nesse curtíssimo prazo a realização desses megaeventos. As legislações urbanas do município ficam refém e sofrem alterações para viabilizar que famílias sejam removidas de seus locais de moradia, que empresas sejam contratadas para executar as obras viárias e dos equipamentos esportivos, etc. Nesse ponto, a agenda dos direitos sociais que deveria ser orientadora da política pública fica em suspenso. Vemos hoje inúmeras violações do direito à moradia, direito à cidade, direito da criança e do adolescente, do idoso, acontecendo em todas as cidades que estão sediando eventos da Copa. Ainda temos que averiguar esses números, mas os comitês populares que estão acompanhando os investimentos direcionados para a Copa de 2014 estimam remoções de 170 mil pessoas.

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